segunda-feira, 9 de julho de 2012

APEGO


Por Marcelo Gonçalves

_ Fernando, coloque a cobertura que o Tenente tá chegando! Rozildo era o mais antigo da viatura, já trabalhava nas ruas há uns bons vinte anos. Fernando rapidamente colocou a cobertura em sua cabeça, ainda incomodava bastante, pois era muito nova.
Da viatura, desceu o Oficial, um jovem de uns vinte e dois anos. O motorista aproveitou para acender um cigarro, enquanto o Oficial caminhou na direção dos dois policiais.
_ Por que vocês não atendem o rádio? Porra, tá o maior zulu de ocorrências e vocês parados aí!  O Tenente procurava fazer sua parte, ou seja, acelerar o encerramento de cada chamado para evitar o acúmulo excessivo de esperas.
_ Só falta pegar a papeleta e levar os dados ao Distrito, chefe... Rozildo não conseguiu terminar a frase.
_ Mas por que não atendem o rádio? Passe-me o relatório de ronda! O jovem Oficial passou a anotar os dados em seu relatório, mas aguardava uma resposta.
_ Chefe, estávamos no interior do PS e...
_ Mas tem que ir os dois! E quem toma conta da viatura? Caralho, se essa merda for furtada ou danificada vai dar maior dor de cabeça! O Tenente estava vermelho de raiva, não se conformava com a falta de presteza dos policiais.
_ Sim senhor. Não vai mais acontecer, só quis que o recruta me acompanhasse para ver como é a rotina no PS. Rozildo pegou seu relatório de volta e foi caminhando até sua viatura na esperança de que o Oficial considerasse como encerrada a conversa.
_ Peguem essa papeleta e encerrem logo a ocorrência! Temos várias para atender ainda, se todos ajudarem será melhor para o pelotão! O motorista jogou o cigarro na rua e levou o Oficial para outro destino.
_ Filho da puta! Disse Rozildo baixinho.
_ Desculpe, não quis te colocar em fria, não sei como isso aconteceu...
_ Não xinguei você, e sim aquele fresco!
_ Mas você poderia ter contado a verdade, não foi sua culpa!
_ Fernando você é mesmo um recruta de merda! De que vai adiantar falar para aquele nojento que você passou mal aqui dentro do PS? Ele vai dar a solução para tudo isso? Nem ele está preparado ainda, é só um bosta de um recruta também! Eu vou dar a solução para você, ok? Considere essa ocorrência como mais uma entre milhares que serão atendidas ainda, apenas isso, entendeu? Não tenha apego a nada! Você não vai consertar o mundo, nem ele quer conserto, certo? Nossa missão é jogar cada coisa na lata de lixo correta, certo? Preste atenção no que estou te dizendo, se você errar a lata, aí vai estar bem fodido! Vamos para o distrito.
_ Mas e a papeleta?
_ Já está comigo. Peguei-a antes de você desmaiar.
_ Posso te confessar uma coisa, Rozildo? Ainda não me recuperei...
_ Eu sei disso. Faremos um deslocamento lento até o distrito e lá não teremos pressa. Não quero morrer por falta de apoio na próxima ocorrência que formos atender!

Mas para um novato qualquer atitude impressiona e deixa marcas eternas em seu âmago, as horas demoram a passar e o sentimento de incapacidade domina todo o ser. As cenas marcantes passarão em sua mente por muito tempo ou para sempre.

_ Sabe chegar ao local, recruta? Rozildo mantinha a atenção voltada para o trânsito, não havia necessidade de olhar para seu companheiro.
_ Eu anotei o nome da rua e vou olhar no guia, parece ser próximo daqui. Fernando encontrou a rua no grosso livro já surrado pelo uso constante. _ É no bairro Laranjeiral.
_ Então é perto da favela, naquela invasão que faz divisa de área com o batalhão vizinho. Rozildo acelerou a viatura, enquanto a voz mecânica do rádio pedia cautela na chegada ao local dos fatos.
_Chegamos! Procure por aí.
O final da rua fora tomada por restos de móveis, entulhos, galhos secos e muito mato, o tímido espaço que restava, mal dava para transitar com a viatura. Era o único acesso à área invadida por famílias oriundas de várias regiões do Brasil, conhecida como Laranjeiral.
_ Procure embaixo das moitas ou de alguma madeira. Não se esqueça de olhar pedaços de pano também! Aquele aviso deixou Fernando mais tenso do que já estava. Curvado, o recruta olhava para baixo como fazem os catadores nas ruas. Pisava com cautela com receio de tropeçar ou de escorregar em algo. Suas pernas tremiam tanto que tinha a sensação de que cairia a qualquer momento.
_ Aqui está! Disse Rozildo apontando para um buraco feito na ligação do esgoto.
_ Meu Deus! Ela está sem roupa!
_ Caralho! Que diferença faz estar vestido ou não numa merda de buraco! Rozildo desceu cautelosamente, apoiando-se nas bordas da cratera. _ Estou ficando velho para fazer essas coisas! Ajuda aqui! Pegue-a!
_ Como eu vou segurá-la sem um cobertor ou pano? O recruta permanecia estático diante da situação encontrada.
_ Puta que pariu! Segura ela, porra! Vou ficar aqui o dia todo?
Ela veio para os braços do recruta. Fernando sentiu o corpinho gelado da criança, segurou-a com carinho, procurando conter a tremedeira. Passou a observar o rostinho do ser indefeso que já não tinha forças para chorar.
_ Rozildo, ela não tem nariz e o queixinho está machucado!
_ São os ratos! Devem ter roído algo mais, com certeza! Rozildo fez um esforço para sair do buraco. _ Entre na viatura que eu te passo a criança, vamos ao PS, já demoramos demais! Na viatura, Fernando pode verificar que a pobrezinha da criança perdera ainda dois dedinhos de sua mãozinha esquerda.
_ Segure-a direito! Ela parece estar caindo dos seus braços!
_ Rozildo, não estou muito bem...
_ Não olhe mais para ela! Faça o que eu digo e tudo dará certo, recruta.
Fernando não olhou mais para o serzinho em seus braços. Nem quando chegaram ao PS. Nem nunca mais.




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